domingo, 17 de maio de 2009

"O Pai beijando a bochecha"


Natércia Pontes

. Saiu hoje um pequeno texto meu no jornal O Povo, em homenagem aos 283 anos de Fortaleza, minha terra natal onde canta o Forró Contrariar. Reproduzo-o aqui na íntegra, com o devido título original, que por alguma razão acabou sendo modificado pelo editor do caderno. Se eu estivesse lá na redação, no momento do extermínio, eu saltaria como um cão pastor, socorreria meu pobre título e rosnaria com os caninos de fora.______________________________________________________________Engenhoca – Relato de uma missão


A fôrma foi inspirada no nariz da vovó Wanda. Masculino e redondo. As ventas sempre abertas, como se pressentissem perene um pum. Os mecanismos sugeriam uma espécie de bicicleta alada, com sensores olfativos distribuídos pelos canais nasais vulcanizados, asas de titânio, um pequeno computador central e uma cabina acolchoada. Engenharia avançada para abarcar lembranças olfativas. Funcionou: o formato aerodinâmico do enorme nariz de poliuretano contribuiu para que a engenhoca de borracha não encontrasse dificuldades em alçar voo.O nariz alado decolou nas pistas quentes do aeroporto Pinto Martins em direção à Caucaia. Tudo ia bem, os comandos afinados, o céu de brigadeiro. Até a nave ser surpreendida por um fumacê espesso. Cheiro oleoso e nauseabundo. Mata queimada com calda de açúcar. Breve tontura, uma vontade pouca de vomitar. Estranheza mesmo que sabida: os sensores logo identificaram o odor. Lá embaixo a chaminé de uma fábrica de castanha cuspia as nuvens gordas e cinzas. Desviei em direção ao mar - sobrevoando a Leste-Oeste, o misterioso Instituto Médico Legal, lembrei da morte e do cheiro de cocô.Passeando por sobre a Praia de Iracema os sensores registraram: o hálito agridoce de cerveja, o pai beijando a bochecha, antigo Estoril, o sol sumindo laranja no mar. À direita, subi a Rui Barbosa, recendendo ao cheiro de pipoca, de potó caído da castanhola. Élan de asseptol do fim do dia, quando o banho de mangueira, jatos gelados de cloro, era a salvação. Súbito os botões da engenhoca começaram a apitar: bafo agourento da Sucan. O jambeiro pintava o chão de rosa, o triângulo do pregoeiro tilintava longe como um sonho, a rede lavada mugia. A nave engasgou, os sensores confusos agora se mostravam mudos.Teimei e segui a calçada nova da Beira-mar, o mix de perfumes baratos, importados, exagerados, se mesclavam com o sal dos redemoinhos das marolas mornas, salgadas, sargaço. Cabeça abandonada de camarão, picolé de morango derretido pelo queixo, posta frita de cavala. As asas da nave vacilaram; acelerei. Adiante, a Praia do Futuro, sundown bezuntado pelo corpo, o cheiro de caranguejo cozido nos dedos, na mão. Névoa de panela de milho, naftalina na gaveta, o nariz alado sucumbia em definitivo. Pouso forçado, tive que deserdar a missão. Suspirei.Ai, amor por Fortaleza, a engenhoca pifou, o plano fracassou. Os sensores não puderam registrar toda a sequência de notas, uma cerzida na outra, às vezes esparsas, assustadoras, porque d'além, do coração

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