terça-feira, 27 de abril de 2010

"Nome Próprio"


Blog
Um filme dirigido por Murilo Salles com Leandra Leal.
Baseado na obra de Clarah Averbuck.


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Quem tem medo de Camila Lopes? Este é um POST em homenagem àqueles que andam escrevendo e pensando barbaridades sobre a personagem Camila.

Antes de tudo devemos um esclarecimento, pois tem gente que não está percebendo o óbvio: trata-se de filme sobre paixão. Paixão e Narrativa (construção de uma narrativa = paixão por cinema). Paixão encarnada numa mulher, e, simplificando, um filme sobre transbordamento, avessamento de limites. O que é lógico e conseqüente, pois esse é o problema do indivíduo: construir seus limites. A "palavra" é um limite - quando escrevemos algo, estamos fazendo uma opção por um significante/significado, portanto, excluindo todos os outros. Uma narrativa é um limite, pois exclui outras. Experimentação de limites - quem não se defronta com essas questões não faz arte. Pois ARTE é avessamento. É atravessar a fronteira do lugar comum.

Lembramos com Foulcault que não existe sujeito nem sexualidade universal, e que os "discursos" sobre o sujeito e sobre o sexo são produções determinadas historicamente.

Voltando à história : primeiro - na antiguidade as mulheres eram máquinas de parir primogênitos machos, e se assim não fizessem, perdiam o posto de ‘predileta’. No seu oposto tinha a cortesã. O lugar da mulher era o da anulação da intensidade afetiva feminina, pois voltando da guerra o homem queria uma pele perfumada e uma amante silenciosa. Depois, na idade média, as mulheres intensas viravam bruxas: as que detinham poderes misteriosos das profundezas da alma e dos mistérios humanos. Algumas poucas se transformaram em guerreiras e foram queimadas em praça pública. Guerra era para os homens. As mulheres pagavam com a vida quando traiam suas condições de "esposas" - por terem desejo, por quererem exercer sua feminilidade: Guenièvre.

É Freud no final do século 19 que postula que sexualidade é prazer. Mas diz que só há um sexo: o masculino. Portanto, mulher com muito desejo é histérica, mulher com muita vontade própria é uma "mala". Mulher que é mulher cuida da casa, dos filhos e de noite é uma gueixa. Perfumada e silenciosa. Só que não goza. Gozo, prazer é visto como excesso. Em ambos os sexos. Hedonismo.

Somente a 50 anos atrás, por causa de um evento desejado pelo homem: o controle da natalidade - com a invenção da pílula - a mulher consegue finalmente sua tardia liberdade sexual. Ela enfim tinha um órgão sexual livre do estigma da reprodução e que pode ser usado exclusivamente para seu prazer.

Pobres senhores, pois com a liberação sexual da mulher, ela deixa de ser ou reprodutora ou cortesã e passa a ser mulher, essa é a grande transformação do final do século XX - o papel psico-social da mulher e uma mudança fundamental do papel dessa mulher na relação homem/mulher em quaisquer dos campos da manifestação humana. Em vez do grande embate entre capitalismo/comunismo esperado para a segunda metade do século XX, o que aconteceu como mudança radical foi o da "ontologia" feminina.

Camila é filha da mulher liberada dos anos 70. Ela nasce e cresce consciente de seu corpo. Não acha uma fragilidade possuir uma vagina e um par de seios, pois estes são instrumentos de sua sexualidade como o pênis é para o homem. Todas as zonas erógenas são para serem usufruídas. Camila não tem problemas com isso.

As mulheres deixam o lugar da posição passiva de "escolhidas" ou "eleitas" e passam a desejar, a escolher, a não querer qualquer homem. Camila não gosta de levar cantadas idiotas, fica sim muito irritada com esse clichê masculino "a cantada". Porque a mulher agora não pode escolher? O que tem de patológico na inversão dessa posição? Sim pois rola uma acusação de patologia social de Camila porque ela se antecipa ‘agressivamente’ à cantadas machistas clichês. Essa acusação é sintoma da permanência ainda na cabeça de algumas mulheres de um conceito arcaico em Freud que diz do caráter fálico como ordenador da diferença sexual, quer dizer, como índice definidor do sexo feminino. E isso fica muito claro, inclusive, na Camila da Clarah Averbuck quando declara-se uma mulher com bolas, literalmente.

A Camila do filme não. É mais complexa e menos machista. Ela quer fundar seu estado feminino através de seu corpo e esse corpo é sua escrita. Uma operação mais 'adulta' que a Camila da Clarah Averbuck que infantilmente afirma ser uma bad-girl e, uma mulher-com-bolas, que é a busca de legitimação submetida a um discurso machista/fálico.

Camila em Nome Próprio faz questão de demarcar claramente essa diferença da Camila de Clarah Averbuck: a ordem do feminino para além da representação fálica. Por isso a nossa Camila (do filme) incomoda tanto às pessoas (homens e mulheres) ainda imersas nessa tradição machista, a do 'monismo fálico' em Freud - ou ainda mais sofisticado, em Lacan: "a mulher como um gozo para além da ordem fálica", quando este propõe: a mulher não existe, só existe um significante, o falo, o feminino está assim foracluído.

Se a lógica fálica determina a inexistência do sexo feminino, afinal, que inexistência é essa que existe tanto, pergunta a psicanalista Regina Neri em seu livro 'A psicanálise e o feminino: um horizonte da modernidade'?

Nossa Camila transborda na exposição de suas contradições para afirmar sua feminilidade contemporânea. Em seu rito apaixonado de procura por contorno e apego. Ela procura apego no chão. Procura descobrir os limites de sua feminilidade em seus ritos mais desesperados de afirmação, daí o texto copydescado pelo diretor Murilo Salles e Viviane Mosé, de Santa Tereza D'Ávila: "Nada me resta senão me perder em você, senão morrer um pouco, senão gozar sem saber do que se goza", e, no seu off, enquanto ‘rouba’ o namorado da amiga (falando sério: transar com o namorado da amiga é quase um clichê!): "Não sei se é ausência de pernas, ou de mim. Não sei se é ausência de chão. Eu sei que é um amolecimento das formas, um derramar das coisas. Um desmaio. Um suspiro sem corpo. Um bicho. É ser um bicho ou um vento. Tanto quanto pessoa na tempestade. Ou não ser. Ou ser nada e vazio". O filme aqui atinge o ponto crucial de sua questão: uma busca incessante de afirmação dessa contemporânea 'identidade feminina' que quer se descolar da mulher cuja identidade ainda é espelhada no masculino. Não é à toa que a cena seguinte da praia é um close de uma dobradiça de uma porta que se abre, marcando uma passagem. Camila adentra no limite: "fora" diz seu namorado Henri. E nesse jogo vai formatando seu corpo que será marcado por essas cicatrizes.

São desses textos que, certamente, Clarah Averbuck não gosta muito, pois os seu são contaminados de determinações machistas, e que ela, sinceramente, acredita estar sendo irônica, sarcástica e irreverente. Na verdade a irreverência - sou mulher mas com bolas - de Clarah é uma confirmação do monismo fálico de Freud. É a irreverência do fálico em Clarah Averbuck...

Outra questão recorrente é a de que Camila no filme não se relaciona com ninguém. Como assim? E com Felipe? Quem destrói/rompe uma relação assim? É quem dormiu na noite anterior com um parceiro fortuito? Não. Quem está metido num namorico de portão? Menos ainda. A fúria com que os dois destroem essa relação - porque sim, Felipe também destrói sim, ou nossos críticos não perceberam as merdas de Felipe? Pode ser que não, porque o ritual da traição é aceitável para os homens. Mas quando uma mulher trai e assume que traiu, fogueira nela. A relação Camila/Felipe existe sim e é/foi uma relação de muita intensidade, na proporção exata da paixão que é desprendida para destruí-la: como diz Camila, é muito amor! Nem todo homem está preparado para entender isso. Pois se não há amor, há indiferença. Eles podem ser tudo, menos indiferentes.

Camila é egocêntrica. Claro que é. Se não for egocêntrica será o quê? Todos começamos nossa jornada egocêntricos. O mundo e a civilização se constrói no embate do egocentrismo com o real. O egocêntrico que não se relaciona com o real morre. É simples assim, morre. Camila sobrevive. É egocêntrica. Mas, devemos ter mais cuidado com os seres que não tiverem em seu ego o seu território bem demarcado. Esse é o perigo do altruísmo. Do bonzinho... O bem e o mal estão dentro. No ser. Portanto cuide do seu ser. Camila está cuidando do dela.

Nome Próprio trata de um rito de passagem, de um processo, de uma construção de narrativa. Essa narrativa fugiu do banal e embarcou num processo de tentar dar conta da procura de um corpo. Do corpo da escrita feminina e do feminino como criação do novo. Isso torna sua personagem quase que insuportável para as mentes de seres mais opacos.

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