sexta-feira, 12 de março de 2010

Micheliny Verunschk


Micheliny Verunschk (Recife, PE, 1972), poetisa e historiadora brasileira.

Publicou os livros de poesia Geografia Íntima do Deserto e O Observador e o Nada, ambos de 2003.


"Geografia do deserto"

Micheliny Verunschk

O CORPO AMOROSO DO DESERTO

Teu corpo
branco e morno
(que eu deveria dizer sereno)
é para mim
suave e doloroso
como as areias cortantes
dos desertos.
Que importa
que ignores minha sede
se tua miragem
é água cristalina.
E a miragem eu firo com mil línguas
e cada uma é um pássaro
a bebê-la.
Ferroam a minha pele
escorpiões de fogo e sol
com seu veneno
e vejo,
magoada de desejo,
os grãos tão leves
indo embora ao vento.



DARKNESS

A solidão,
essa tempestade,
esse gozo às avessas,
esse jeito de eternidade
que as coisas adquirem
mesmo sendo apenas vidro.
Essas cartas ardendo
no estômago das gavetas,
essas plumas
que surgem quando se apagam
as últimas luzes do dia.
Tudo faz a noite mais longa,
visão de uma sombra
sobre um berço.
Não há resposta
e o labirinto é o falso,
os lábios são falsos,
somente abismo,
absinto verdadeiro.
O sono,
grande placa de cerâmica,
e o tempo,
demônio a ranger sobre o infinito.



HIERÓGLIFO

Na pedra da alma
gravo a cifra
do que sinto:
sou a um só tempo
o alvo
o caçador
e o arco tenso,
estendido.



DEUS

O pássaro,
essa página branca,
voa.

O deserto,
uma língua de areia.



SEDA

Costurados
sobre mim
as mãos e os pés
dos poetas mortos.
Como maçãs inchadas,
coaguladas
logo após o café.
Destroços laminados
de algum submarino
tocam de leve
os olhos feridos
e abrem à força
as bocas
(embora saibamos
que não podemos
naufragar na sala
que ela arde de dezembro).
Sutil seria, pois,
um outro beijo
como uma serpente
num cesto de fina palha,
mas ainda preferível este:
um verme
um fuso
uma flor:
aberta em chaga



DA ROTINA

Varrer o dia de ontem
que ainda resta pela sala,
o dia que persiste,
quase invisível
pelo chão,
nos objetos
sobre os móveis da sala.
Varrer amanhã
o pó de hoje.
Varrer,
varrer hoje.
(E domingo quebrar nos dentes
o copo
e sua água de vidro.
Segunda, não esquecer:
varrer todos os vestígios.)


Micheliny Verunschk
In Geografia Íntima do Deserto
Landy, São Paulo, 2003

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