sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

"Estudo para ontem"



Júlio Castañon Guimarães, mineiro, de 1951


"Estudo para ontem"

A Aila Sampaio

tanto quanto se sobe a Mantiqueira
tanto quanto noite adentro
a Mantiqueira te envolve com o frio
tanto quanto à noite no alto da Mantiqueira
os perfis escuros das árvores
marcados contra a noite
assim quase imóveis na cerração que corre
tanto quanto na Mantiqueira
se chega a tal ponto


a tal ponto da memória
em que ao longo das curvas
lento se recurva sobre si o corpo
contra ele próprio envolto
e uma espiral desaba desenvolta
até os confins de outra cerrada cerração
tão remota tão sem repercurso
que sequer se pode entrever
a manhã clara e o espaço aberto
dentro em pouco sobre a Mantiqueira


a noite sim a noite insiste sempre adiante
tanto quanto se sobe a Mantiqueira
para que melhor se desfie a espiral
que desce até quando
o corpo sobre outro se envolvia
até mesmo quando lá no alto
em meio às árvores
ainda eram desde sempre
os únicos personagens do horizonte
mergulhados num silêncio
tanto quanto se sobe a Mantiqueira
a cada curva da espiral
num silêncio que subsiste
concreto como uma sombra


(do livro Matéria e paisagem, 1998)




as escolhas afectivas :

bio/biblio

Júlio Castañon Guimarães, mineiro, de 1951, publicou, além do estudo Territórios/conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes (Imago, 1993), os seguintes livros de poemas: Vertentes (1975), 17 peças (1983), Inscrições (1992), Dois poemas estrangeiros (1995), Matéria e paisagem (1998) e Práticas de extravio (2003). Todos estão reunidos no volume recém-publicado Poemas (Cosac Naify, 2006), que inclui ainda uma pequena coletânea até então inédita intitulada Ensaios, figuras.



poética

Freqüentemente ando às voltas com uns versos de João Cabral: “Fazer com que a palavra frouxa / ao corpo de sua coisa adira”.

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