sexta-feira, 30 de outubro de 2009

"Grupo Aranha"



A Sinfonia Da Cidade Ao Meio Dia, me deixa surdo para os sons que vêm de dentro, me deixa cego pelo brilho dos metais, me desafina pelo excesso de regência; mas isso já era, minha flor. Ouça "já": jásom, jáluz, jáestrelua, jábar, jámel, já toda nua. A nota "já", (ainda ausente?), aguarda a chance, de inaugurar um novo tempo no andamento. Ouça "já". Fora da partitura, longe da sinfonia. E ao teu redor, mulher jázul, jádália, e jacaré. Lual. Pois é. Já são sei não se horas adão.

Poema: Mário Montaut (sp)
Imagem: hélio Rôla (ce)

fortaleza é nossa debilidade



"Pintura Sensorial, Pintura Conceitual"


Herbert Rolim
Artista visual e professor do Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará (CEFET-CE).


Revisitar a década de 1980, sob a perspectiva das inserções do Grupo Aranha em Fortaleza, oportuniza um olhar distanciado de 20 anos sobre a cena artística cearense, de modo particular no que diz respeito ao fenômeno de formação de grupos, nesse período, como Grupo de Brigada Muralista, Fratura Exposta e Interferência, a exemplo de outros grupos procedentes de centros economicamente mais fortes, para onde convergiam as atenções, como o Grupo Casa 7, em São Paulo, e o Grupo Atelier da Lapa no Rio. Isto nos obriga, a princípio, a repensar o termo Geração 80, que deu título à exposição Como vai você, geração 80? (1984), no Rio, como sinônimo de arte dos anos 1980, do que se fazia no Brasil de forma generalizada, quando, na verdade, temos vários grupos e artistas emergentes espalhados pelo País.

Naturalmente que não podemos compreender esse recorte das Artes Plásticas Cearenses, a partir do Grupo Aranha, sem inseri-lo num contexto histórico-político-social maior, internacional e nacional, que vai do declínio do mundo soviético à queda do muro de Berlim, do movimento “Diretas já!” à hiperinflação e à eleição de Fernando Collor, pelo voto direto, para a presidência do Brasil. Fatos esses potencializados pelos meios de telecomunicações, contaminando regiões e culturas de modo abrangente e em ritmo acelerado.

Essa comunicação de ressonância global, cujo diálogo se fazia em torno de acontecimentos que atingiam a humanidade e intercambiavam as diferentes visões de mundo, contribuiu para a formação de grupos, independentes de organizações partidárias e institucionais, passando a se preocupar com questões ecológicas, sexuais, democráticas, desarmamentistas... – ações que iam além dos meios políticos convencionais.

No campo das artes plásticas, no Brasil, esse clima de organização e contestação se refletia nos jovens artistas dos anos 1980 em contraposição a uma crítica autoritária que insistia num discurso oficializado, de vocação geométrica, conceitual, de uma arte voltada para ela mesma, negando a pintura figurativa e impondo-se de forma hegemônica nos anos 1960 e 1970. Em outro sentido, as experiências sensoriais dos anos 1970, interessadas em ultrapassar os limites entre arte e vida, não abriam espaço para a pintura autoral, de ordem gestual, por entenderem que a arte, nesse caso, se reafirmava como mercadoria e o artista como celebridade, pontos não dogmáticos de sua cartilha conceitual.

Esses artistas, sobretudo aqueles vinculados à Escola do Parque Lage no Rio e à FAAP em São Paulo, criaram um movimento de resgate da pintura, alforriando-a para novas experiências. Para além do prazer da pintura, característica pela qual ficou mais conhecida (o que é pouco e limitante), a arte dos anos 1980 preocupava-se com questões de materialidade e representação, de dimensões de espaço e gesto, de construção de imagens e alegorias, de visualidade e conceitualização, de libertação do chassi e teatralidade, de subjetividade e aproximação do público. O mais importante era a liberdade de expressão, e nesse sentido cabiam diálogos com as gerações anteriores, principalmente com as vanguardas da pop arte dos anos 1960, no Brasil, ou às idéias e os conceitos das experimentações dos anos 1970, conquanto a pintura tivesse sua legitimidade.

Nos anos 1980, em Fortaleza, na falta de escolas de arte, os artistas plásticos trocaram idéias em torno dos salões de Abril, BNB e UNIFOR Plástica, das galerias Ignez Fiúza e Arte Galeria, do MAUC-UFC, da Sala Interarte do Centro de Cultura Germânica e da Casa de Cultura Raimundo Cela. É dessa trama de teias que vai emergir o Grupo Aranha, formado por Hélio Rôla, Sérgio Pinheiro, Eduardo Eloy, Kazane, Alano de Freitas e Maurício Cals, com a participação de Kátia, Efímia Rôla e outros artistas que se sentiam atraídos pelas idéias do grupo.

Hélio Rôla, mentor intelectual do grupo, retorna dos Estados Unidos, em 1970, depois de uma temporada de estudos no Art Students League de Nova Iorque. Em Fortaleza, mantém contato com Zenon Barreto, pioneiro de arte mural na cidade desde os anos 1960, razão pela qual foi escolhido, mais tarde, para ser patrono do Grupo Aranha. Nesse período, também se sente motivado pela arte de rua do pessoal do Pirambu, herdeiro do pintor Chico da Silva, que antecipa algumas características da pintura dos anos 1980, embora sem consciência das questões que na década seguinte iriam aflorar.

Em 1975, Hélio Rola passa a morar no então tranqüilo bairro da Praia de Iracema, onde pinta pedras e muros. Em 1978, ao lado de Sérgio Pinheiro, pinta o muro Modigliani. A parceria com o companheiro de pincel, que vinha do movimento hippie dos anos 1960 (“proibido proibir”), cujas trilhas da América Latina já havia percorrido, foi provisoriamente interrompida em 1979 quando Sérgio ganha uma bolsa do governo francês para estudar na Universidade de Paris, sob orientação do teórico em arte pública Frank Popper.

No entanto, a presença de Eduardo Eloy, de volta a Fortaleza em 1981, depois de freqüentar a efervescente Escola de Artes Visuais do Parque Laje, no Rio de Janeiro, campo minado do que se convencionou chamar de “Geração 80”, aqui em sintonia com as idéias de Hélio Rôla, contribuiu para lançar as bases do Grupo Aranha, ao lado de Alano de Freitas, Maurício Cals e do pintor e músico Kazane, recém-chegado do Rio Grande do Sul. Juntando-se a eles, Sérgio Pinheiro, em 1983, ao retornar de Paris.

Havia uma atmosfera favorável em Fortaleza. Vivia-se o clima nacional de uma sociedade que ia às ruas exigir seus direitos civis, que se mobilizava para participar da Constituinte, que conclamava por eleições diretas. Os artistas sentiam a necessidade de validar sua imagem à festa da democracia, de ampliar o circuito de arte, socializá-la, de buscar alternativas de mercado, de exercer o prazer da pintura.

Nesse clima, os muros da Praia de Iracema, até então, habitat da saudável boemia, tornaram-se suportes, a céu aberto, para o Grupo Aranha tecer sua pintura, alternando ações engajadas com experiências sensórias de deleite (“Pintura, Pintura”) com cores vigorosas e pinceladas gestuais.

A primeira ação de ressonância pública, assinada pelo Grupo Aranha, foi engendrada por motivações políticas, em 1987, quando um painel de 150 metros de comprimento, intitulado Constituinte, despontou no muro da Companhia Energética do Ceará (COELCE), na avenida Leste-Oeste, chamando atenção da cidade. Diante da repercussão desse mural, que teve o apoio da Fundação de Cultura de Fortaleza, a prefeita da cidade, Maria Luiza Fontenele, promoveu uma série de projetos (“Ônibus da Cultura”, “Arte nos Muros”, “Fort-Amor”, “Arte Urbano” de Sérvulo Esmeraldo), instaurando um olhar diferenciado no tecido urbano.

Outra “brigada de pintura”, esta de ordem ecológica, bateu de frente com a poluição sonora na Praia de Iracema, que, a partir da segunda década dos anos 1980, começou a sofrer invasão de empresários da noite, ao mesmo tempo em que a classe burguesa residente preferiu evadir para a Aldeota, permanecendo no bairro aqueles moradores mais resistentes. Desse quadro, em 1989, figurou o mural SOS Praia de Iracema, estruturado pelo Grupo Aranha, aberto a todos os artistas (e não-artistas) que quisessem participar com a finalidade de mobilizar a comunidade, recolher assinaturas de protesto, chamar atenção da mídia e sensibilizar a classe política.

Somaram-se a essas ações engajadas do Grupo Aranha outras de puro regozijo da poética de pintar, em diferentes muros da cidade, à semelhança da grande tela de 1990, exposta na Praia de Iracema como sincera celebração da cor e do gesto.

Mesmo para quem esses anos 1980, no Brasil, não passaram de uma “década perdida”, assim conhecida pelo turbulento sistema econômico; de “desilusão política”, por ter chegado ao fim tendo de negociar com velhos fantasmas da ditadura e lideranças nacionalistas de ocasião; de uma safra de artistas, segundo uma parcela da crítica de arte, com poucos sobreviventes depois da “farra da pintura”, da overdose de trabalhos nem sempre de qualidade, não podemos usurpar o mérito dessa geração de ter aberto os caminhos para a pluralidade estética da arte que vivenciamos hoje no País.

Trata-se também de História da Arte Cearense, cujo fio da meada passa obrigatoriamente pelas teias do Grupo Aranha.

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