sábado, 30 de maio de 2009

"O cineasta de Hitler"

Leni Riefenstahl, Olympia, 1938


Ruy Vasconcelos (AFETIVAGEM)


A cineasta de Hitler
Leni Riefenstahl, Olympia, 1938

Nenhum Anjo Azul para Leni Riefenstahl
Dramas alpinos—como A Luz Azul, A Montanha Sagrada—uma espécie de sub-gênero bastante característico do cinema proto-nazista, contam entre os êxitos iniciais de Leni Riefenstahl. E essa notável diretora começou como atriz. Nesses melodramas os valores morais "corretos," como lealdade e esforço por uma “regeneração” da humanidade, sob bases laicas e ultra-nacionalistas, eram exaltados, assim como a “germanidade”. O irônico é que boa fração dessa safra de filmes foi financiada justo por produtores judeus. Ou mesma escrita por roteiristas judeus – caso do grande teórico do cinema húngaro Belá Balázs, que, de outro modo foi mais um, na legião de amantes de Riefenstahl. Dramas alpinos são da época do cinema mudo, prenúncios do sonoro. Riefenstahl atuava neles lançando mão de sua experiência como bailarina de cabaret: largos gestos de pantomima e intenso magnetismo físico.
Harry Sokal, um banqueiro judeu, foi o protetor de Riefenstahl durante os anos 20 e início dos 30. Cobriu-lhe de jóias e casacos de peles. Pediu-a em casamento. Debalde. Mas a colaboração entre ambos foi conturbada e frutífera, até que Sokal, a exemplo de Bálázs, acabasse banido da Alemanha e seu crédito de produtor retirado de êxitos de bilheteria como A Luz Azul, que tornaram a atriz Leni Riefenstahl uma celebridade, antes mesmo de passar para o outro lado das câmeras.
Riefenstahl queria ser atriz de Hollywood no início da carreira. E mesmo fez tudo para ser indicada para o papel principal de certo filme, O Anjo Azul. A mesma película que chamaria a atenção dos produtores de Hollywood para o potencial explosivo da atriz que acabou sendo indicada para protagonista. Uma tal Marlene Dietrich. Tivesse o talento de Dietrich e talvez o nazismo houvesse sido privado de sua cineasta.
A despeito de sua mediocridade geral, esses filmes siroposos e datados ensinaram muito à futura diretora de Triunfo da Vontade [1934] e Olympia [1934], seus dois documentários clássicos, até hoje vistos e analisados nas escolas de cinema pelo planeta afora. Especialmente quando trabalhava tendo Arnold Franck como diretor e Hans Schneeberger como cinegrafista. Ambos possuíam legítimo interesse por experimentações visuais. Algo a ser derivado pela Riefenstahl diretora.
É esse interesse, aliás, que se faz presente em Triunfo da Vontade. A magnitude do filme chegou a despertar a atenção do próprio Hitler. E Riefenstahl converteu-se na única cineasta subordinada diretamente ao Führer e não a Göbbles, o ministro da propaganda. A cineasta oficial de Hitler. O filme centra-se nos comícios nazistas em Nuremberg, e foi gravado nos moldes de uma megaprodução hollywoodiana: 36 operadores de câmera, 17 iluminadores, dois fotógrafos de still – um dos quais, conta-se, designado pela diretora para fotografar unicamente a ela própria em ação.
Triunfo da Vontade começa com Hitler. Nos céus, a bordo de um avião sobrevoando Nuremberg. Ao modo de um semi-deus que baixa à terra dos mortais. É de uma epicidade absurdamente bem orquestrada. Pois Riefenstahl consegue traduzir para película toda pompa e grandiosidade das paradas nazistas movendo-se pela arquitetura austera de Albert Speer. E também com Hitler o filme se despede, como se numa profissão de fé que, aparentemente, jamais foi abjurada por Riefenstahl, mesmo após a derrota nazista. E o espantoso de ela ser julgada inocente [quando se pensa que gente como Ezra Pound apodreceu anos na prisão!].
Já em Olympia, Rifenstahl abre o filme com alusões à Grécia e Roma. O paralelo com o Império Romano sempre foi algo ardentemente buscado pelos ideólogos nazistas – assim como ardentemente detectado e deplorado por uma intelectual do calibre de Simone Weil, que identificava o Ocidente livre à Grécia, os nazistas a Roma. Nos primeiros planos de Olympia surge a clássica estátua do Discóbulo – o lançador de discos – uma cópia que Hitler havia mandado comprar em Roma, ás pressas, em 1938. Rapidamente a imagem passa para um atleta moderno. Um saudável representante da raça ariana, também lançando o disco. A ironia é que o modelo usado por Riefenstahl era, na verdade, um jovem russo, Anatol Dobriansky – que, não por acaso ela agregou a sua legião de amantes após pagar um cachê aos pais do rapaz. De resto, rapidamente ela se cansou do adolescente russo. E então teve um caso com um atleta de verdade, o americano Glenn Morris, vencedor do decatlo.
Quarenta e cinco câmeras e sete meses de edição tornaram Olympia um filme esplendoroso, quase irresistível. Nunca se prendera antes as proezas do esporte em fotograma como ela, então, o fez. Em Olympia, Riefenstahl experimenta bastante: suspende câmeras em balões e teco-tecos, amarra-as ao pescoço de corredores da maratona e fixa-as nas selas dos cavalos em provas de adestramento e salto. Seus problemas com Göebbels quanto a financiamento de filmes tornaram-se ainda mais agudos. Ela, no entanto, credita a animosidade que o ministro da propaganda lhe devotava a razões que passavam mais pela cama do que pelo orçamento do Ministério: Göebbels presumivelmente teria visto frustrado o desejo de tê-la como amante.
Não se pode acusar Olympia de ser fascista por ser racista, uma vez que tão obviamente o centro do filme é Jesse Owens, o atleta americano negro. Mas se pode acusar Olympia de ser fascista pelo culto ao corpo perfeito. E apenas a ele. [Em descarte de toda mal-formação física como uma espécie de mal-formação moral. Por essa pretensão de pureza. De eliminar a presença do corpo mal-formado, anômalo ou deformado].
Havia ainda sua incapacidade para dirigir a contento filmes de ficção. Seu feature Tiefland, que demandou-lhe uma década até ser lançado, em 1954, é um pequeno prodígio kitsch que não chamaria a atenção do crítico de cinema do bairro. Em uma das cenas, a própria Riefehnstahl surge como bailarina de flamenco num ridículo a toda prova. Alega-se também que os extras usados em muitas cenas, ciganos recrutados em um campo de refugiados em Salzburgo, não sobreviveram aos campos de concentração nazistas. E, mesmo que ela alegue o contrário. O caso é controverso. E está provado que muitos não escaparam à carnificina.
Ao que tudo indica, foi seu vasto domínio da técnica cinematográfica – emprestada em parte por Arnold Fank – e o talento de seu diretor de fotografia, Hans Schneeberger, somados, claro, ao seu intenso magnetismo pessoal, que a tornaram apta a ser a técnica que Hitler desejava para traduzir na tela o espetacularismo da estética de massas fascista. Algo análogo ao que Benjamin entreviu ao dizer que o fascismo estetizou a política. Embora, ao que tudo indique, o deslumbre de Riefenhstahl com o nazismo ia mais pela casca: os grandes movimentos de massas, comícios, rituais coletivos, e o culto pessoal de um líder onipotente. O mecanicismo bizarro desses movimentos.
Riefenstahl, no entanto, não tinha competência artística para entender a catástrofe vivida na Alemanha. Ou mesmo para se reinventar a partir de uma auto-crítica. Seus esforços ao largo da grandiosidade épica das paradas nazistas ou do uso do aparato técnico do Estado para o registro das Olimpíada de Berlim foram rematados fracassos. A consciência da Alemanha pós-guerra, no cinema, viria somente um tanto depois dela, na década de 60, com cineastas como Herzog, Fassbinder e Wenders.
Mais importante para Riefenstahl: o registo da tribo. A narrativa de seu rito. Sempre a partir do ângulo de um vetor laico. Aparentemente o que ela via nos Nuba, a tribo africana a quem dedicou um minucioso ensaio fotográfico, na maturidade, era o mesmo que via nos comícios nazistas: ordem, disciplina, força coletiva, beleza, certa calistenia física sob algum comando: uma espécie de culto da tribo. À sua imaculada beleza e juventude. Se a tribo é um bando de ciganos, guerreiros sudaneses ou tropas da SS, isso lhe era indiferente, em sua frieza. Em seu desejo de poder e glória. Em seu empenho pelo triunfo da vontade.
Nos seus últimos anos, ela dedicou-se a uma série de documentários sob a vida nas profundezas dos oceanos. Talvez um ambiente tão rarefeito e “harmônico” quanto as alturas dos Alpes, que o nazismo explorou como símbolo de pureza. Susan Sontag dedicou-lhe um ensaio exaltado [Fascinating Facism, 1974], que é até hoje referencial.
Leni Riefenstahl morreu aos 101 anos, em 2003.

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