quinta-feira, 16 de abril de 2009

Kitsch e Merquior

José Guilherme Merquior nasceu na cidade do Rio de Janeiro, a 22 de abril de 1941 e faleceu no Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1991.


Merquior

KITSCH E EFEITISMO

Nos anos 20, o regime soviético pré-estalinista encorajou o cinema de vanguarda - mas as massas continuavam a preferir as películas à Hollywood. O fato ilustra bem com que extensão o Kitsch está enraizado na consciência das massas; uma extensão seguramente maior do que pensam os que se inclinam a considerar o fenômeno da mentalidade estética degradada um simples reflexo de condicionamentos efêmeros, impostos pelos interesses dos "donos" da "indústria cultural" (8). Não se trata aqui de dar razão aos distribuidores cretinos, que alegam dar ao povo "o que ele quer": chanchada e melodrama; trata-se, isso sim, de levar mais longe a indagação sobre as raízes psicossociais do Kitsch. Em outras palavras: de penetrar mais fundo na geologia moral do homem da massa e de seu antepassado cultural imediato - o burguês.

Ao examinar a experiência estética peculiar ao Kitsch, deparamos com o mecanismo da reação controlada. O Kitsch é a estética do digestivo, do "culinário", do agradável-que- não-reclama-raciocínio. O Kitsch faz cosquinhas na boa consciência do homem "médio", que detesta pensar, porque vive

fugindo à verdade
como de um incêndio
(Drummond)

Como sempre, boa consciência e má-fé andam de braços dados.

Mas a reação controlada, garantia de alienada "distorção", não esgota as metas psicológicas do Kitsch. Este visa também ao efeito. O Kitsch é uma arte vocacionalmente efeitista, feita "pour épater"(9). No seu artigo da Partisan Review, Avant-garde and Kitsch (artigo pioneiro na análise do monstro), Clement Greenberg (10) afirma que, enquanto a arte de vanguarda, sendo como é, "abstrata", introspectiva e reflexiva, dedicada às explorações "metalingüísticas", tende a imitar os processos da arte, o Kitsch imita os efeitos da arte. Numa época em que toda arte autêntica cultiva o que se poderia chamar de califobia, tornando suspeito o hedonismo estético, o estilo comercial estende a mão ao "bonito", regala-se com o "deleite" produzido pelo recurso descarado aos truques mais teatrais.

O Kitsch não é só um narcótico e um digestivo; funciona, antes disso, como um excitante vulgar. Excitar, para poder "distrair" - como poderia ser de outro modo, se a questão é distrair esse pobre zumbi, sonâmbulo quase totalmente insensível, que é o homem comum do nosso tempo? O Kitsch é o tape-à-l'oeil, a arte dos efeitos que ferem a vista.

No entanto, o efeitismo não nasceu com o Kitsch. A arte da surpresa e dos efeitos teatrais remonta, pelo menos, ao barroco. "È del poeta il fin la meraviglia / chi non sa far stupir, vada alla striglia"... clamava o seiscentista Marino. E Góngora, embora mais requintado, não desdenhava o "efectismo". Mas o barroco foi justamente o primeiro estilo ocidental a comprometer-se com uma finalidade ideológica. A teatralidade da pintura sacra de Caravaggio, Rubens ou Reni, e da escultura religiosa de Bernini ou Raggi (Morte de Sta. Cecília, Sta. Agnese in Piazza Navona, Roma) provém de um emocionalismo reclamado pela "propaganda fide" da Contrarreforma (11). É claro que a Idade Média se serviria abundantemente da arte para fins de catequese e doutrinação; porém só com o barroco, estilo de uma Igreja abalada pelo cisma protestante, é que a edificação pela arte, essa "Bíblia dos iletrados", adquiriu cunho francamente ideológico. As pietas das elites medievais eram culturalmente espontâneas; mas a religiosidade seiscentista tem muito de voluntarista e mecânica, talvez porque as condições reais de vida, nessa infância dos tempos modernos, fossem muito mais infensas ao genuíno ethos cristão, à caridade e ao senso comunitário, do que os mores prevalecentes até a Alta Idade Média.

Contudo, embora marcada por uma forte margem ideológica, a arte barroca ainda repousava num consenso cultural tão vasto quanto ativo. Antes da secularização da cultura (que só se firmaria no séc. XVIII) o apelo aos valores religiosos contava com sólida ressonância popular. No Seiscentos, a paidéia cristã estava interiormente minada e, a médio e longo prazos, condenada ao recesso como foco de criação cultural; não obstante, a sociedade, católica ou reformada, ainda não dispunha de alternativa para o cristianismo como foco de cultura. Essa posição ambígua da ideologia religiosa parece explicar por que a arte de propaganda do barroco pôde fomentar efeitos anagógicos, e preservar uma qualidade estética, absolutamente inexistentes na produção Kitsch. Em síntese, a arte barroca, expressão ideológica da transição entre a sociedade européia tradicional e a moderna, foi o produto de uma cultura, enquanto o Kitsch não passa de uma exalação da carência de cultura (de paidéia). Por isso mesmo, o efeitismo barroco possuía legitimações impensáveis no âmbito do tape-à-l’oeil Kitsch.

Logo, a simples ocorrência de efeitismo, sem maiores qualificações, não nos autoriza a falar em Kitsch. Até porque, o efeitismo de Góngora, como o de Caravaggio, faz parte de uma organização formal arquicomplexa de signos (verbais ou plásticos). Na obra desses cumes do barroco, o efeitismo não exclui o trajeto múltiplo, intelectualmente exigente, da verdadeira percepção estética (é precisamente nesse ponto, aliás, que a maioria dos gongóricos e dos "tenebrosi" caravaggistas ficarão muito aquém dos dois mestres: bons epígonos, eles se concentrarão quase exclusivamente nos "efeitos" mais fáceis do cultismo ou do "chiaroscuro"). Já a arte Kitsch dispensará sem hesitação a convivência com requisitos mentalmente elevados. É com o Kitsch que a arte do efeito se converte ao "agradável" ao "culinário" e digestivo.

(8) v. M. Horkheimer e Th. W. Adorno: A Indústria Cultural, in Dialektik der Aufklaerung, 1947 (trad. ital., Dial’ética dell’Illuminismo, Einaudi, Turim. 1966).

(9) Efeiticista, como efctista: tomemos emprestado essa palavra, tão expressiva, a nossos companheiros hispânicos.

(10) C. Greenberg: Avant-Garde and Kitsch (1939), coligido no livro de B. Rosenberg, D. M. White et. al., Mass Culture, Free Press, Glencoe, 1960.

(11) Sobre o impacto (negativo) do emocionalismo barroco no ideal clássico-heróico absorvido pela plástica ocidental por obra do humanismo renascentista, v. o já cit. Saudades do Carnaval, págs. 122-24.

( A arte e alienação na sociedade de massa. IN: FORMALISMO E TRADIÇÃO MODERNA, 1974)

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