segunda-feira, 7 de setembro de 2009

"Pormenores da literatura sem livros "


"Yes, George" by Sheila B Art
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"Pormenores da literatura sem livros"

Cândido Rolim (*)

Tenho observado que o livro, organismo córneo de lombadas, ainda é visto como único sítio equiprovável onde a arte deixa seus insumos e a escrita deposita sua borra fomentadora de currículos, lócus estético canonizado avesso às distorções e apropriações muitas vezes mais criativas de outras ferramentas. O livro como etapa-que-se-fecha-sobre-si, imune a uma apropriação promíscua por outras mídias, sujeitos e fontes periféricas, incapaz de, em fuga exponencial, roçar outros estágios estéticos.

Se a consistência de uma literatura dependesse tão somente da possibilidade de ancoragem em um suporte fixo definido que cumpre o conhecido percurso retilíneo uniforme: edição, publicação, lançamento, condecoração e morte, a escrita do escritor e contos, poeta Aldir Brasil estaria fadada a sofrer um desprezo maior e mais contundente que aquele a que as próprias obras encadernadas vêm sofrendo. Seu autor provavelmente fosse referido como mais um cronista de costumes, que escreve interessantes micro-estórias peculiares a uma cidade e a um tempo. Recusando-me a ver essa literatura através do monóculo das toponímias redutoras tipo “literatura local”, é a partir de uma não sujeição a uma série numerada de páginas escritas que me refiro à obra escassa e dispersa do escritor nascido em Fortaleza em 1964. Calha aqui, portanto, uma leitura igualmente trânsfuga, parcial e indisciplinada, adequada à anárquica configuração de seus textos que, por enquanto, não se amoldam ao conforto compartimentado das estantes. Meu precário ponto de partida é uma série de textos enviados pela internet sob o provisório título de “Microestórias” e “Trampolim” ou presentes em algumas plaquetes publicadas pela cidade sob várias rubricas, ora como poemas ora como narrativas. Portanto, a escrita com que ora me ocupo nada ou quase nada tem a ver com livro, apesar de “merecer uma edição cuidadosa” como se costuma dizer.

Verdade seja dita, a escritura de Aldir esquiva-se desse fogo cruzado de reificações que tem de um lado o bárbaro deslumbramento tecnológico de sujeitos escravos do fluxo que não relativizam sequer os ganhos pífios de suas performances e de outro o “empachamento livresco” (Pignatari) votado às instituições carreiristas plasmantes. Sua escrita possui leveza suficiente para saltar sobre o impasse midiático e dar as costas aos torneios da política estética. Sua angular sutil ocupa-se com outros meandros, outros acidentes escolhidos para figurar em uma cena múltipla de dramas sem desfecho, em lances de cruel sutileza, em que seus personagens filiam-se a um trailler sem deflagração, sem clima para um “desfecho transcendental”.

Alguém já referiu, com certa dose de acerto, que Aldir Brasil, através de escritos em filigrana, revira a memória de sua adolescência urbana, tal como mais um sensível observador de sua cidade e suas pequenas cosmogonias. Estabelecer alguma pertença topográfica no seu texto é possível, mas é bom que se examinem antes o negativo desses takes que o autor coleciona para montagem de uma paisagem-monóculo, cheia de aparições fora do lugar. Escrita que se apropria de chistes, fetiches, slogans, de forma que nomes, lugares, ruas, marcas, comparecem ao texto menos como indicação de uma aura pitoresca do que índice de uma operação crítica de exuberante in/fidelidade cronística. Nesse caso, alguma preocupação provinciana pela caracterização é descartada de cara. Aldir apresenta suas figuras em plano transversal, enviesado, destituídos de qualquer condescendência lírica ou lúdica. O time de seus textos é, no mínimo, impróprio para dignificar figuras e gestos com intenção memoriosa. Na verdade sua tensa leveza não se presta a uma empresa de louvor ou reconstituição da simbologia pitoresca da urbe. A ironia corrosiva não preserva o pitoresco; explode-o. O peculiar que, provisoriamente, comparece nas imagens relatos dão passagem para um discurso crítico, mordaz, dos tipos, dos gestos, de outro naipe; a tensão social de sua “crônica” percorre outra medula.

Correndo todos os riscos, inclusive aquele de ser confundido com alguém identificado visceralmente com a cidade, Aldir Brasil trabalha com um jogo de con/textos, fatos em escala milimétrica, construindo o que poderia ter sido, encaixando fins prováveis a uma narrativa fragmentária, sem centro. Essa angular eclética e sem pregnância, escandalosamente livre, parece não selecionar seus alvos a não ser pelo que têm de humanamente sofrível, corruptível, terno, em sua felicidade desafiador, transgressor em seu afeto, afrontador de uma ordem pública ou privada e, afinal, de uma estética.

Aldir Brasil fotografa um plano fissurado. A câmera trêfega passeia, acerca-se criativamente a um cotidiano núbil, atravancado de taras. Nos seus filigranas urbanos, em um primeiro momento, detecta-se uma entourage paroquial, quase folclórica, passadista, tal o comedimento quase teatral das ações –“Izaac envia brincos a Rebeca como primeiro sinal de seu amor” (Estelionato) – e às vezes esse procedimento de intersemiose beira um idealismo desencantado, farrapos de uma utopia que se organiza em brechós, briques e galerias de todo gênero.

Capto em Aldir Brasil um indisciplinado “cronista” de pequenas transgressões de um mundo alicerçado em certezas paternalistas, escrita que se casa a lances repentinos de personagens que, assim como surgem, se apagam assim do nada que virou sua história sem bordas, sem continuidade, sem nota. Há textos em que pessoas largam o conforto da normalidade núbil, dominical, e lançam-se no vácuo: Confessou que tinha esquecido a aliança no ônibus embrulhada com as compras (Lençóis novos), Prometeram se encontrar / na Cidade dos Funcionários / onde fariam um filho (A arte da fuga). Enfim, ações e desistências em constante simulação, mapas secretos, caminhos que não levam a lugar algum, inquietudes, transtornos, que em si revelam tanto a força opressiva (castrante) dos bons êxitos que desafiam, quanto o desolador contra-signo de seu dilema.

Podemos também apontar em Aldir um procedimento minucioso, não menos livre, de trabalhar com as peças de um arsenal kitsch, ruínas de um discurso (e de um mundo) propagandístico revogado, elemento explorado por Aldir de forma magistral. Não se comporta como um obtuso gigolô de fatos que, ao primeiro filete do “drama humano” destaca sua equipe para a cobertura folhetinesca e piedosa dos tipos, aplicando-lhe um hipócrita verniz restaurador para a posteridade. O kitsch aproveitado por Aldir não se submete a uma operação de preservação, para se ter na sala como curiosas lascas do corpo social em decomposição. Seu relato de passagem é um mosaico de imagens sem possibilidade de um êxito conclusivo, filigranas urbanos sem inteireza. A ironia, o duplo sentido, a ambigüidade, a suspensão simbólica, a desmontagem referencial, cópulas sinestésicas, sincronias, são operações ricas que não permitem ao texto alcançar uma deflagração. Aproximo sua escrita à locução econômica e ao traço urbanóide das H.Q.´s. De fato, a exposição dos frames citadinos é tão rápida quanto artificiais (se me permitem o termo), provisória, ad hoc, dura somente enquanto o autor coloca suas “personas” em cena, nos micro-cenários. Veja-se o texto Esclarecimento. Após todos saírem de cena, nada resta a se recolher, nem os cacos da fútil moldura, nem os vestígios canônicos de um drama humano que servirá de pasto a alguma moral.

Aldir Brasil realiza uma fratura crítica na síntese chantagista do slogan, quem sabe para destacar ainda mais seu torpedeamento às palavras caras ao fluxo de um sistema consensual e previsível. Vejamos:


Uma decisão justa só pode ser tomada por uma personalidade justa
-Lázaro, vem para fora
deste emprego eu não saio mestre

Todo espectador é um covarde
Os meninos nigerianos que ouviram Mozart foram devorados por leões.

A regra é a miséria de todos os males
Ela finalmente encontrou o homem ideal
perfil aquilino,
sapatos lustrados,
(sensibilidade refinada)

bastaram três dedos de prosa

Não é por acaso que o autor parece não querer se alargar em suas cenas. Vejo isso menos como adesão a um já desgastado exercício contemporâneo da síntese narrativa, do que como um sintomático fastio de elucidação, de exaurimento da própria realidade fática e lingüística em que con-vive o poeta. Talvez um sestroso procedimento de derrisão discreta – afinal o autor também sai de cena, antes que lhe perguntem algo sobre o cenário célere, sobre a índole de sua “mensagem”.

Essa sutileza não deixa que o humor do texto se dilua em gracejo ou paródia ou pilhéria auto-circundante. As sentenças são ditadas a partir de um patamar irônico, meio non-sense. Flashes cotidianos entretecidos de notícias do mundo (imaginários ou não, não se sabe), trazidos à sua fabulação semântica. Esse trancelim da linguagem molda um novo texto, um novo diafragma no noticiário do dia. Diria que o autor vasculha uma beleza ágrafa nos lapsos subalternos da história, resultando sua notícia anti-paradigmática em luminosa “desforra do desejo contra a realidade” (Olivier Reboul). Observo isso em textos como Mostra de animação chinesa e Trancelim.

Paralelamente e enquanto isso, em passeio devasso pelo clichê (político, ideológico, televisivo, literário, moral), vai utilizando jargões da propaganda, lemas e lexemas ao léu, sínteses opacas da mídia, dando uma intrigante sobrevida plástico-afetiva a esses tipos condenados à repetição mórbida. Os idioletos são habilmente descontextualizados, arrancados a fórceps de seu anacronismo e de sua infame dedicação persuasória, e recebem nova textura semântica, decalcadas de seu discurso chapados. Em Frente ampla ou em Realpolitik colhe-se uma apropriação indébita da “palavra de ordem” partidária. Dá-se aí a distorção criativa de siglas, clichês e slogan (discurso que de tanto chantagear com o imaginário, tem que negociar com este também o prazo de sua verdade/validade). A matéria prima (para usar uma imagem comum) de Aldir são essas lascas de enunciados, tão dispersos quanto variados, o silabário romântico-brega, as desobediências de bolso, gasto, ofegante da logorréia do mercado e da política, a crueldade leve dos impasses conjugais, os êxitos dúbios, sem esquecer o calão da alta cultura dos homens condenados ao falar-certo.

Digno de nota, um nostálgico e devasso passeio por emblemáticos nomes que submetidos às injunções de um esforço lírico deformante (e também fecundo) deixam de ser nomes e se desvencilham de uma referência (Pedro Basílio, Bobby Fischer, Milton Dias, Charles Mason...). Curioso que orbitando quase sempre em torno e a partir de um nome (Tereza Cristina, Lúcia, Nefran, Ideuzuite, Eliseu, Nicodemos, Edineuda, Eleonor, Eusélio, Ezequias...), abdica de uma referência ou de um histórico provável dessa mesma “nomismática”. Aproximo-o ao poeta Edimilson Almeida Pereira que desde a dobra cruel do olvido, passeia, liba e recolhe nomes, como rostos sujeitos a constante fuga, no poeta mineiro mais como reconstituição holográfica da memória afetiva e em Aldir como deleite e tara mesmo da expressão, principalmente quando utiliza “nomes que já contam sua história” ou que já são uma comédia. É dessa forma que ele empurra o leitor para um estado de exceção semântica, em cilada cinemática construída com as mesmas cores, os mesmos elementos dado pelo arranjo do mundo, tornando essas estampas em figuras de um vasto noticiário atemporal.

Assim, o “fato em estado de notícia”, que era ponto de partida para aquela distorção poética, passa a subministrar um enredo de realidades semânticas incompatíveis (buda, messias, isaac, aldenora...) perfilados em profanadoras poses, em crítica sincronicidade, arranjo, estranheza. Aqui a híbrida humordacidade do autor.

Felizmente disponho de textos não submetidos a um desarvorado desejo de publicação que, duvido, esteja no catálogo das obsessões do seu autor. Por enquanto o leitor privilegiado tem a oportunidade de libar, nos textos de Aldir, em constante e febril arranjo, tanto o rumor de sua elaboração como também peças em versão única, quem sabe em última configuração, tal como Os Gideões (repousam sobre telhas) ou Estelionato que, a meu ver, em virtude de sua capilaridade dramática retesada ao máximo, compactada no mínimo conduto gráfico, por mim não se submeteriam mais a nenhum outro retoque. Se o texto de Aldir Brasil merece um livro? Eu diria bem mais que isso.









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Cândido Rolim poeta, nasceu em Várzea Alegre / CE, tem publicados Arauto (Edições Dubolso, Sabará/MG, 1988), Exemplos Alados (Letra e Música, Fortaleza/CE, 1997), Pedra Habitada (AGE, Porto Alegre, 2002) e Fragma (Funcet, Fortaleza/CE, 2007) e coisas em jornais e revistas impressas do país e do exterior. E-mail: candidorolim@hotmail.com

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